terça-feira, 2 de junho de 2009

madalena




texto: Fernando Fonseca
fotos: ž



Estavam sempre ansiosos e húmidos os olhos de minha mãe, nesse dia que, na maior parte das vezes, acontecia na antevéspera do Natal.

Lembro-me que, nessa tarde, a minha mãe acendia cedo a fogueira donde brotava abundante fumarada, que logo envolvia chouriças, moiras, salpicões que pendiam do tecto de colmo e que só se esfumava através da pequena janela enegrecida, que minha mãe ora abria ora fechava em gestos impacientes, enquanto olhava ansiosamente o caminho que, sobranceiro à aldeia da Gralheira se perdia para lá da Lagoa de D. João.

Era por esse caminho que, sabe-se lá a que horas, o meu pai havia de regressar da azenha de azeite, em Barrô, nas margens do Douro, para onde tinha partido, há uns trinta dias ou mais e para onde voltaria novamente, passada a quadra do Natal.

Estivesse o tempo que estivesse, caída a noite, sempre a minha mãe imaginava o meu pai e o almocreve, Sr. Alexandre, perdidos nas quebradas da serra, acossados por lobos esfaimados ou por salteadores impiedosos ou então soterrados na neve, sem ninguém que lhes acudisse, por mais que gritassem por socorro.

Era então que, já com todos os meus irmãos reunidos à volta do lume que crepitava na lareira, a minha mãe nos obrigava a rezar todas as orações, que lhe vinham à memória, para proteger os viajantes, enquanto ia ajeitando a fogueira à volta da panela de ferro de três pernas.

Depois de longas horas de espera e mais longos suspiros, ouvia-se o rodar do fecho de madeira da porta de entrada, seguido de um chapinar pesado de botas pelo corredor escuro. Surgia então, da escuridão, a figura de meu pai, que, envolto em roupas enlameadas, mais parecia o "fantasma" a que os mais velhos recorriam, quando queriam assustar os mais novos.

-Então, meus marotos, como é que se diz? - ralhava minha mãe, enquanto, apressadamente, desfazia um tímido abraço que tinha trocado com o meu pai.

- Bote-nos as "banções", senhor pai! - respondíamos nós em coro.

Ainda o meu pai não tinha respondido "o Senhor vos abençoe", já os mais pequenos disparavam a pergunta que, há muito, guardavam: - Ó pai, trouxe as pinhas?

Respondia sempre que se tinha esquecido; mas, passado algum tempo lá nos entregava um saco de sarapilheira, todo cheio de buracos, por onde elas espreitavam brilhantes de magia e resina!

Depois de meu pai proceder a uma breve operação de limpeza e higiene pessoal, era servida a ceia melhorada, donde se destacavam as moiras, morcelas, ossos e costelas, que o meu pai partia, por entre queixas e lamúrias contra a fraca luz da candeia a petróleo, habituado que vinha à luz eléctrica na azenha onde trabalhara.

Acabada a ceia e enquanto se rezava o terço e a minha mãe lavava a loiça, colocávamos as pinhas ao lume para abrirem e, posteriormente, serem extraídos os pinhões. Inevitavelmente, surgiam conversas e discussões entre os mais novos, o que levava a tia Maria, cuja aspereza tinha o tamanho do seu afecto pelos sobrinhos, a vociferar: - Estes montes de merda não têm devoção nenhuma! - implicando, de seguida, com o meu pai, pelo facto de ter adormecido, mal começara a reza do terço.

- Estava, com os olhos fechados, a meditar nos mistérios do rosário! - justificava-se ele, acrescentando, mal humorado: - Além disso, não tens nada que estar a dar leis na casa dos outros!

Acabado o terço, apaziguados os ânimos e terminada a extracção dos pinhões, eram os mesmos rigorosamente distribuídos em partes iguais e metidos em saquinhas de amostras que as minhas irmãs mais velhas tinham confeccionado. Começava-se então a jogar ao "par e pernão" e também ao rapa, que eu tinha, toscamente, preparado de um pau de piorna verde.

Horas mais tarde, quando a noite já ia no dia seguinte e meu pai nos obrigava a ir para a cama, ainda estavam húmidos os meigos olhos de minha mãe.


Sem comentários:

Enviar um comentário